domingo, 3 de outubro de 2010

Acampamento Farroupilha retrata o imaginário gaúcho


Uma matéria que eu e minha amiga Schari fizemos sobre o acampamento farroupilha
Por Julia Finamor e Schariane Kozak

Piquetes e rituais tradicionalistas


Réplica das estâncias gaúchas em meio à arquitetura urbana da capital, o Parque Harmonia é um abrigo da cultura e da história do povo sul-rio-grandense desde a sua inauguração, em 1982. A cada mês de setembro, milhares de gaúchos exibem pelos corredores do Acampamento Farroupilha o lenço vermelho, a bombacha e o chimarrão, e revivem dentro dos piquetes um pouco da rotina bucólica presente nas raízes do seu povo. Entretanto, o ritual que marca o início da Revolução Farroupilha propõe a comemoração de um evento histórico mal interpretado por muitos gaúchos, que se aproximam da tradição apenas por apreço, sem compreender o valor simbólico da celebração.
Em meio aos acampados, entre a Ponta da Cadeia e a margem do Arroio Dilúvio, o cheiro de churrasco é um convite para quem passeia pelo local. Centenas de entidades, famílias e Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) desfrutam da comida típica ao ritmo dançante da música gaudéria. Os diversos galpões de madeira, o chimarrão nas rodas de amigos, as costelas assadas sobre o chão, os fogões a lenha e os galos que cantam o início do dia encenam a vida campeira que muitos gostariam de ter. Com a cuia na mão, Luiz Antônio Cordeiro Oliva revela que, contagiado pelo som da vaneira, buscou no CTG Descendência Farrapa os costumes e valores que acredita serem únicos daqui. “Os gaúchos são diferenciados pela inteligência, pelos sentimentos, pela visão política. Somos pioneiros na agricultura e temos gado na fronteira. Somos privilegiados”, orgulha-se. Além disso, Oliva lamenta que a República Rio Grandense não tenha se consolidado de forma permanente. Segundo ele, a dimensão do Brasil não permite que o governo federal dê a atenção necessária a todos os estados: “sou separatista”.
Na porta do piquete Para-Boi surge um senhor grisalho, de chapéu, lenço e bombacha, com o aperto de mão firme de um típico campeiro. Seu Elder Fontela de Paula, 80 anos, cresceu em cima do cavalo, em meio à lida campeira. Aproveita a semana de festa e o espaço do seu galpão para oferecer almoços a idosos e crianças carentes - mais uma maneira de vivenciar os valores adquiridos dos antepassados farroupilhas. Fontela conhece pouco sobre a história do estado: “leio sobre o Rio Grande do Sul de vez em quando, mas na minha idade é difícil gravar muita coisa”, brinca. Foram as músicas e os costumes que lhe despertaram o orgulho e o amor pelas tradições do sul.


Os Críticos
Alguns, porém, são mais críticos quanto à trajetória dos farrapos e às comemorações que envolvem o dia 20 de setembro. Zenildo Rodrigues, que há duas décadas largou a vida urbana para se dedicar ao mundo rural, destina suas energias ao trabalho de artesanato em couro. Rodrigues relata que sempre levou a vida inspirado na tradição sul-rio-grandense, buscando sua identidade nas músicas, no campo e na história gaúcha, a qual demonstra conhecer por inteiro. Sendo assim, o homem que considera ser gaúcho um estado de espírito, se permite avaliar os milhares de tradicionalistas que celebram o 20 de Setembro no Acampamento Farroupilha. Para Zenildo, algumas pessoas vão ao parque Harmonia brincar de ser gaúcho, uma vez que festejam o que, supostamente, desconhecem. “Como vamos comemorar uma vitória que não aconteceu e uma guerra onde morreram milhares de pessoas?”, questiona. O gaúcho esclarece que foi uma disputa de interesses e não ideológica, como todos acreditam. Repudia, portando, o ideal dos separatistas de emancipar o Rio Grande do Sul: “Manter a união é o certo. Nós queremos viver com respeito a todos”, desabafa.


Quem sabe
A alegria das comemorações e o clima de confraternização que resulta do sentimento bairrista despertado no mês de setembro, no entanto, não convence a todos. Jornalista e doutor em História, Luiz Carlos Tau Golin aponta em seus estudos a ilegitimidade da cultura gaúcha, visto que suas diretrizes foram estabelecidas por um grupo restrito de pessoas, pioneiras do Movimento Tradicionalista Gaúcho, fundado em 1967. Segundo ele, o que chamamos de cultura não congrega a totalidade da história dos antepassados do povo sul-rio-grandense, não podendo, portanto, ser chamada de tradição.
O autor de “Manifesto Contra o Tradicionalismo” defende a preservação das culturas locais e regionais, destruídas pelo novo movimento. Segundo ele, o tradicionalismo transformou-se em um mundo imaginário regido por pensamentos retrógados e interesses privados, mascarados pelas belas vestimentas, adereços, música e comida características. Todos elementos de uma identidade inventada, como explica Tau Golin.
Por outro lado, quem participa do Movimento Tradicionalista Gaúcho e conhece a história do Rio Grande encontra na trajetória dos farrapos motivos para se orgulhar e ser fiel à tradição. Zulmir Sotoriva, de 49 anos, começou a fazer parte do CTG Galpão Campeiro em 1980, foi membro do Conselho Diretor do MTG de 1997 a 2004 e Coordenador Geral de 2006 a 2010. Ao lado da esposa, participa religiosamente dos eventos tradicionalistas e faz questão de difundir os valores e a bravura de seus antepassados por todo o Brasil.
Em princípio conquistado pela sinceridade, amizade e harmonia das pessoas que conviviam no local, entrou para o CTG, onde percebia os mesmos valores que recebeu de seus pais, a mesma importância que dava para a família, para o lar. Contudo, o que antes era apenas encanto, se multiplicou e iniciou, assim, uma história de orgulho, admiração e amor pela tradição. Sotoriva, à medida que passou a conviver com a cultura do Rio Grande, notou uma peculiaridade: o povo gaúcho, diferente dos demais, leva nas palavras a honra de sua história e carrega na essência os valores de seus antepassados.
Segundo o gaúcho, o orgulho não vem da guerra em si, e sim da bravura e coragem dos ancestrais diante da superioridade do governo central. “Não comemoramos o sangue derramado, cultuamos a raça dos guerreiros farroupilhas, sua vontade e seus feitos. Como o hino já diz, foi uma ‘ímpia e injusta guerra’”, reflete. Além disso, exalta as mulheres dos guerreiros, que durante os 10 anos de combate, cuidaram sozinhas de seus filhos e defenderam corajosamente o seu patrimônio.
Julgar uma guerra, de acordo com Zulmir, é uma tarefa inviável, uma vez que a sociedade da época tinha uma mentalidade restrita, como ele mesmo adjetiva. Para o tradicionalista, mesmo que o contexto decisivo para a eclosão da guerra se desenhasse novamente nos dias atuais, não haveria batalha alguma. Os farrapos, visando a atenção do governo central, entrariam em acordo ou encontrariam alternativas para alcançar seus objetivos. Ciente do verdadeiro significado da revolução, Zulmir afirma ser contra o separatismo: “O certo é nos mantermos todos unidos”, assegura, mostrando que suas convicções e bons costumes vão além de um mero discurso bairrista.

Entrevista Luiz Carlos Tau Golin
1) Por que o senhor não considera o Tradicionalismo a representação da nossa história e da nossa cultura?

O Tradicionalismo não é Tradição, não é Folclore e, muito menos, cultura Popular. Tradicionalismo é uma “cultura de massa”. É um movimento da esfera privada que disputa o controle dos bens simbólicos, traduzidos em recursos econômicos e poder político. Os rio-grandenses são multiculturais, mestiços com heranças americanas, europeias, africanas e asiáticas, os sentimentos de pertencimento são variados. Em que pese o seu dogmatismo, o Tradicionalismo não consegue operar unificadamente em todos os setores sociais.

2) A criação de uma identidade idealizada seria uma estratégia para suprir as carências do povo gaúcho perante a falta de reconhecimento do governo central?

A invenção da polaridade entre o Rio Grande do Sul e o governo central é uma criação da historiografia republicana e ecoada pelo Tradicionalismo e seus rituais ignorantes. Com o passar do tempo, integrou também os discursos regionalistas. Aos poucos, o predomínio dessa versão virou uma bandeira antibrasileirista para a evocação de uma espécie de distinção ou superioridade gauchesca. O problema é que o discurso acaba sempre se transformando em comportamento. O rio-grandense, quando adota o gauchismo, acaba sempre um intolerante.

Entenda o que foi a revolução farroupilha:


O conflito de caráter republicano,que buscava a visibilidade perante ao estado, estendeu-se de 20 de setembro de 1835 a 1° de março de 1845.

As causas:
A justificativa inicial consiste no conflito entre os liberais, que visavam um modelo de estado com maior autonomia para as províncias, e o modelo de caráter unitário imposto pelo governo central.Além disso, o charque gaúcho estava cada vez mais valorizado e abastecia o mercado do pais.Contudo, o cambio mantinha-se baixo e o charque argentino passou a ser comercializado com menos custo no Brasil-o que despertou revolta do povo gaúcho. Não se pode esquecer que a historia do rio grande do sul, desde seus primórdios foi marcada por conflitos ideológicos: diversos gaúchos, antes até mesmo da revolução farroupilha,tentaram de maneira desastrosa implantar uma república.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Hustene chorou baixinho

Olhem que lindo a história de Hustene escrito pela jornalista Eliene Brum em sua coluna para a revista época.Eliene escreve todas as segundas para a revista.Nesse endereço
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI63840-15230,00-NOSSA+SOCIEDADE+ELIANE+BRUM.html tem todos as colunas da jornalista.Eu poderia ficar o dia todo lendo a coluna de Eliane,ela escreve de um jeito simples ,incrível e com muito amor.



Ao se deitar na noite de 28 de junho, Hustene Alves Pereira, mais conhecido pela família e amigos como Pankinha, chorou baixinho. Estava a dois dias de completar 51 anos e se sentia humilhado.

Para compreender o sentimento de Hustene, é preciso saber que espécie de homem ele é. Eu o encontrei pela primeira vez numa reportagem no início de 2002. O país era castigado pelo desemprego, e eu buscava um brasileiro que contasse este momento histórico pela vida, não pelas estatísticas. Um que estivesse no parapeito do abismo. Não quando acabamos de perder o emprego e a possibilidade de conseguir outro logo é uma promessa que quase tocamos com a mão. Nem aquele outro período, anos depois, em que a esperança já se foi e
manter a cabeça erguida em cima do pescoço é um esforço grande demais. Eu buscava o momento que me parece o mais trágico, quando percebemos que o abismo se descortina como vertigem e nos agarramos aos capins da borda conscientes de que não impedirão nossa queda. O instante em que os filhos começam a sustentar a casa sacrificando o próprio futuro, os produtos anunciados na televisão são para outros e nos escondemos durante o dia para ocultar dos vizinhos que não temos para onde ir. Quando descobrimos que não há lugar para nós no projeto do presente, que nossa vida é para a geração
seguinte, reduzidos a gráficos que os especialistas explicam sem precisar manchar as mãos com nosso sangue.

Hustene vivia este exato instante. Continha nele todas as estatísticas, mas nele elas eram carne. Morava, como ainda mora, na periferia de Osasco, na Grande São Paulo, quatro filhos e uma mulher que ama. Numa casa de sala, cozinha e quarto, além do terraço e do banheiro, num terreno que divide com parentes. Quando o conheci, era um homem com brilho nos olhos, discurso articulado, esperneando contra todo um país que falhava com ele. Tentava
compensar os estudos que não pôde terminar lendo tudo o que lhe caía nas mãos e buscando na TV programas que pudessem lhe ensinar alguma coisa. Com um senso tão grande e tão particular de honestidade que preferia andar a pé dezenas de quilômetros por dia em busca de emprego a aceitar passagens de ônibus da prefeitura. Hustene achava que tudo que não ganhava com trabalho era esmola.

Acompanhei-o por um tempo em sua peregrinação, dividi com sua família o feijão que sua mulher, Estela, tornava saboroso com pouco além de um tempero que só podia ser amor. E depois que a reportagem foi publicada continuamos nos acompanhando mutuamente, às vezes perto, às vezes mais longe. Nos últimos oito anos testemunhei Hustene lutar pela sua vida de todos os modos, com uma força que quem o visse pela primeira vez não adivinharia naquele homem tão franzino. Lutando pela literalidade de sua vida que a precariedade
do sistema público de saúde solapava, pela dignidade de sua vida sem a qual ele não admitia seguir existindo.

Se me perguntassem um dia o que para mim é mais triste testemunhar como repórter, como gente, eu diria que é o desperdício da vida humana. Não apenas pela morte em si, mas pela vida que não pôde se tornar tudo o que poderia ter sido. O desperdício do potencial de homens e mulheres. As tantas pessoas com uma capacidade extraordinária, mas que não tiveram as condições mínimas para desenvolvê-las. E, o pior, com a consciência do que poderiam ser se tivessem nascido em um país com uma desigualdade menos abissal que o
Brasil. Vidas roubadas porque o Brasil está aquém de seus sonhos.

Hustene é um destes homens que sonhou mais com o país que o país com ele. E o Brasil foi triturando-o como o moinho da música famosa de Cartola. Nos mais de três anos em que ficou desempregado, apalpou o desespero sem cair no comportamento clássico de tantos. Não se embebedou em bares que não podia pagar, nem levantou a voz para a mulher ou bateu num filho. Em vez disso, desenhava e escrevia furiosamente em folhas de papel. Fazia bicos pagos aos trocados, carregando caixas enquanto uma bursite lhe arrancava lágrimas. Mas seguia acreditando na trindade em que havia assentado suas melhores esperanças: Che Guevara, Corinthians e Nossa Senhora de Fátima. E agarrado à sua carteira de trabalho. Ensinado que fora pelo pai, retirante nordestino, metalúrgico, que este é o documento mais importante na vida de um homem.

Quando já havia consumido todas as unhas para se manter agarrado às paredes do precipício, em 2005 Hustene conseguiu um emprego com carteira assinada e tornou-se o "porteiro Pereira". Não era um trabalho à altura de sua capacidade, mas nunca, nunca mesmo, vi alguém tão feliz trabalhando por pouco mais que um salário mínimo. Às 4h20 da madrugada ele já estava dentro do primeiro ônibus, com um orgulho que só ele entendia, e cumpria turnos estafantes de 12 horas sem uma queixa. Hustene achava que tinha escalado o
despenhadeiro. Mas em outubro do ano seguinte ele sentiu-se mal e Estela o levou ao posto de saúde. O médico garantiu que era "só" uma crise de diabetes e o despachou para casa, onde ao chegar ele teve um AVC (acidente vascular cerebral) que paralisou o lado esquerdo de seu corpo.
Hustene reaprendeu a falar e a andar. Em 14 de abril de 2008 estava tão ou mais feliz que nas vitórias históricas do Timão: tinha arriscado seus primeiros passos sem bengala. Mas em janeiro de 2009 teve o segundo AVC. Agora ele se desequilibra mais, a força lhe escapa, sente náuseas. Esquece dos acontecimentos recentes. Nem sempre se lembra de tomar água. É Estela quem precisa avisá-lo para tomar os 16 comprimidos do dia além das três doses de insulina com que tenta manter o diabetes mais ou menos domado. Com o segundo derrame também se apagou dentro dele o dom do desenho.

Mas Hustene não perdeu sua lucidez. Ele ainda segue escrevendo no computador que ganhou, em diários com papel e caneta, sem perder um documentário na TV. Tão honesto como sempre, em sua casa nunca admitiu nem mesmo os "gatos", as ligações clandestinas de eletricidade, TV por assinatura, etc. Nem mesmo nos piores momentos, ele fraquejou em fazer a coisa certa. A honestidade, tão fácil para quem pertence às classes mais favorecidas, ainda que não muito praticada, para os da estirpe de Hustene é uma conquista arrancada de cada um dos dias. Com tudo o que é, apesar de tudo que lhe tomaram, Hustene continua acreditando. De sua trindade, mantém a crença em Nossa Senhora de Fátima e no Corinthians, esmoreceu um tanto de Che Guevara. Em nenhum momento perdeu a fé no Brasil.

Há um ano começou a perceber que sua visão piorava. Descobriu-se que ele tinha uma doença grave e degenerativa. Mas os exames demoravam, assim como o tratamento. Uma amiga pagou-lhe um médico particular para obter um diagnóstico preciso. O profissional alertou que era muito sério e não dava para esperar. Se não se tratasse logo, ficaria cego. Mas não havia dinheiro para tratamento privado. Hustene voltou ao sistema público de saúde.

Mais de seis meses se passaram enquanto ele ainda espera por tratamento. Agora testemunha a acelerada ruína de sua visão. Tento imaginar o tamanho da impotência e do pavor que é acompanhar dia após dia a corrosão dos olhos sem conseguir a assistência médica necessária, a mercê de um sistema em que cada exame crucial demora meses para ser feito e, quando a data da consulta médica finalmente chega, já é necessário fazer outro que levará mais alguns meses. Não alcanço.

Mas ainda não foi por isso que na noite de 28 de junho Hustene chorou baixinho ao se deitar, a dois dias de completar 51 anos. Naquela segunda-feira ele levou uma hora e 50 minutos até alcançar o posto do INSS. Era dia do jogo do Brasil X Chile. Trêmulo, instável, com náuseas e
enxergando mal, ele apresentava-se na hora marcada desde maio para que um perito comprovasse a necessidade de renovação do seu benefício. Nas mãos, Estela tinha os laudos médicos exigidos. Para cada um deles, uma correria, muitos ônibus e muita fila. Como se dissesse algo como "hoje não temos brioches, volte daqui a dois meses", uma funcionária informou-lhe que os peritos estavam em greve. E remarcou a perícia para 19 de agosto.

Junto com outros desesperados, Hustene voltou para casa. Os laudos médicos perdem a validade em 30 dias, só servirão para virar lixo reciclável. Mais ônibus, novas filas, para que outros sejam feitos, dificultando ainda mais uma existência sofrida e sobrecarregando também um sistema já deficiente. Enquanto não passar pela perícia, Hustene nada ganha para sustentar sua família. Meses sem dinheiro para o supermercado e as contas. Era por isso
que ele chorava. Pelo pouco caso com a sua vida, uma vida que lhe custa tanto manter dentro dele.

Não me cabe julgar se a greve dos peritos do INSS é justa ou não. O que posso afirmar é que a situação de Hustene e de todos como ele é injusta. O que escrevo não é um relato sobre um acontecimento pontual, mas sobre uma vida roubada aos poucos, de várias maneiras diferentes. Igual a de milhões nos percalços, diversa de todas.

Nos chocamos com a destruição causada pelas guerras declaradas, quando a vida de um povo está seguindo seu curso e de repente tudo acaba, tudo se perde, sonhos destroçados junto com braços, cabeças e pernas. Aqui escrevo sobre as guerras invisíveis, em que tantos ainda morrem sem alarde e bem mais perto, pela omissão do Estado e de todos nós, mesmo quando o país começa a melhorar alguns de seus índices e diminuir sua fome. O massacre
silencioso e persistente que se desenrola à margem dos que podem pagar por saúde e educação de qualidade, dos que têm rede de proteção quando ficam desempregados e dos que ao serem desrespeitados em seus direitos sacam o iPhone e acionam seus advogados.

Há um país que morre aos poucos e a cada dia ao nosso redor. Ao contrário de Hustene, que perdeu a saúde e agora perde também a visão por descaso, que é condenado a meses sem dinheiro para sustentar a família pela força de uma única frase pronunciada por uma funcionária pública, nós enxergamos bem, mas escolhemos ser cegos. Para ele, porém, não existe esta opção. É sua a vida que escapa como água entre seus dedos. São seus os sonhos triturados. É sua tragédia tudo o que poderia ser - e não será apenas porque nasceu no lado
errado do mundo.

Acho curioso quando especialistas de todo tipo transformam a miséria do outro em parâmetros lógicos. Nos gráficos e análises destes técnicos e acadêmicos tudo faz sentido e nada purga. Eu gostaria de saber como eles encarariam se fossem eles a não ter a chance de ser - e seus os filhos sem chances. Histórias como a de Hustene são tão corriqueiras que nem sequer
viram notícia. Agonias como a dele acontecem sempre, é por isso mesmo que deveríamos nos indignar. Em vez disso, nos anestesiamos. Temos voz, mas preferimos calar.

Tenho 44 anos, muito e pouco, dependendo do ângulo de quem olha. O suficiente para testemunhar a perda de indignação que vem nos corrompendo. A impossibilidade cada vez maior de vestir a pele do outro. Tão confinados e com tanto medo dentro de nossa própria pele que a dor do outro é encarada como uma ameaça ao frágil equilíbrio de nosso mundo cada vez menor. Então nos escondemos no cinismo, que é a pele sintética dos covardes.

Se um dia Hustene ficar cego, sei que seus olhos ainda vão brilhar com a mesma febre. Eu não sei como ele faz, porque há nele uma sabedoria que não existe em mim. Mas ele resiste. Ainda que claudicante, sem forças, espoliado o tempo todo, ele me assegura que é feliz. Pergunto a ele como, por que, de que matéria é feita essa força que o faz levantar a cada rasteira, ainda que restando no chão em alguns pedaços. "Eu vejo meus filhos em casa nos fins de
semana, o riso da minha neta, ao meu lado a mulher que amo e que escolheria em quantas vidas tivesse. E há ainda uma viralatinha linda que eu cuido chamada Pantera. Nunca precisei visitar um filho na prisão porque eles são honestos como eu. Sei que para eles sou espelho. Vou seguir lutando. Acredito no meu país, ele já foi pior para os pobres, está melhorando."

Naquela noite, quando chorou baixinho, Hustene se sentia humilhado. Mas não só. Tinha dentro dele também revolta. Me escreveu para que sua voz me alcançasse e, através de mim, ele pudesse dizer que essa indiferença com a sua vida dói. Que essa indiferença pode matá-lo. E a morte para brasileiros como Hustene nunca vem como metáfora.

Depois, escreveu para dizer que segue acreditando. E lutando. E esperneando. Escreveu para dizer que não vai desistir de brigar pela vida.
Olá pessoal! Quem conhece alguma pessoa muito especial e tiver algo legal para contar sobre ela, manda pro http://www.retratandoavida.blogspot.com/

Bom, eu cheguei de viagem agora e conheci muitas pessoas das quais gostaria de escrever. Fui para o nordeste e vi muitos tipos de "vidas" e pessoas que não abrem mão da felicidade; a mulher que largou tudo e foi morar no rio de janeiro, o vendedor de cocada que se denomina como zé bonitinho, o vendeder de ships, a mulher que cuida do banheiro de uma festa, fica pedindo que todos vão embora, bebe cachaça para passar o frio, é a única que trabalha em casa pois tem 5 filhos para criar; os meninos que moram em um vilarejo ao lado de uma aldeia indígena que mal tem luz e as ruas são cheias de buracos, brincam na rua e dão informações aos turistas de como chegar na praia do espelho em troca de duas moedas.E muito mais.. aos poucos vou tentar escrever sobre essas histórias..

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Os cinco sentidos de Jéssica






Pessoal, segue um texto feito pela minha colega, amiga e futura jornalista Mariana Soares.Achei muito linda a história.Vale a pena ler!! Afinal é uma vida extraordinária de superação vista pelos olhos sensíveis de uma futura jornalista. Sendo assim, não tinha como não estar no Retratando a Vida né?


Continuem comentando, estou adorando os comentários no blog, por email, facebook e twitter. Mandem sugestões ou textos para o meu e-mail :juhmagalhaes1@hotmail.com.

Obrigada gente , emocionem-se com Jéssica!!


Vestibulanda, aluna do terceiro ano do Colégio Pastor Dohms, Jéssica de Souza Antonio, sonha com o diploma em ciências jurídicas. E vai além. Quer se tornar juíza. A filha única, de dezesseis anos de idade, sempre foi acobertada de mimos pela mãe e teve seus desejos satisfeitos pelos avós. Dentre os cinco sentidos: olfato, paladar, tato, audição e visão, Jéssica não é dotada pelo ultimo, porém, possui dois capazes de suprir o mesmo: a percepção e a memória.
A menina teve má formação congênita ao nascer, impossibilitando-a de poder enxergar, mas ela encontrou maneiras diferentes de repor esta falta. Focada e dedicada, Jéssica pesquisa conteúdos na internet, através de um programa instalado no seu computador que soletra tudo o que ela escreve. A mãe é sua grande companheira e incentivadora. Marli teve que aprender técnicas de braile para auxiliar a filha.
Ainda de madrugada, a menina de traços frágeis vai de onibus para a escola, acompanhada da mãe, que é aposentada. Jéssica tem aula durante toda a manhã. O almoço acontece no colégio mesmo, e como uma de suas características é ser enjoada com alimentos, ela reclama da comida do local. A menina permanece no seu “segundo lar”, para ter aula de literatura do curso de pré-vestibular e depois, de língua alemã. A estudante é apaixonada pelo idioma estrangeiro, visto que faz o curso há 4 anos e declara o desejo de fazer intercâmbio para a Alemanha.
“A Jéssica tem uma atenção acima da média e ainda é extremamente responsável, comparada à outros alunos da classe. Sempre que peço para responder perguntas do livro, ela traduz todas as questoes para o braile e traz tudo respondido”, afirma o professor de literatura Fernando Brum.
Para auxiliar os estudos, Jéssica grava todas as aulas, tendo o gravador como seu melhor amigo. A menina possui grande habilidade em mexer nos botoes do aparelho. Após o inicio da aula anunciado pelo professor Fernando, Jéssica liga o instrumento e permanece em silêncio, mantendo a máxima atenção nas explicaçoes do mestre. Entre uma e outra virada de pernas, a menina mostra expressoes faciais remetendo pleno entendimento no assunto. Enquanto seus colegas anotam o conteúdo, Jéssica retira da bolsa uma pequena escova de cabelo e penteia as longas mechas escuras, mostrando ser vaidosa, mesmo sem ver sua fisionomia.
Com um jeito doce e delicado é adorada pelos colegas. No intervalo da aula de literatura, Jéssica senta-se na cantina com uma amiga. No local, chega um colega e poe suas maos sobre os olhos de Jéssica, pedindo que ela adivinhasse quem seria. Ela sem hesitar falou alto: “Ricardo!”. E acerta. Todos dão risada. As brincadeiras continuam pra ver se a menina adivinha de quem pertence as mãos que ela toca. E mais uma vez, Jéssica descobre todas. Ali percebo que o fato de Jéssica não enxergar, passa a ser uma diversão saudável, tanto para ela, quanto para os amigos. A deficiência visual parece ser superada pela menina, que tem um poder de percepção incomparável.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

De Professorinha a Ícone




Estava vendo meus textos, quando encontrei essa redação que fiz para o colégio quando estava no terceiro ano.Achei legal postar aqui, pois ela gerou muita confusão e angústia; confusão por parte das minhas professoras, a do colégio, a Mix, me incentivou muito, disse que estava linda e que podería ser assim, a outra do cursinho pré vestibular, colocou na folha assim: TEXTO NARRATIVO, VÁ AO PLANTÃO!!!!; angústia, então ,por parte minha, que pensei que tudo estava perdido e realmente nunca ia passar no vestibular se não cedesse áquele padrão de redação;fria, sem graça, mas que todo mundo fazia.Nunca gostei dessas redações dissertativas que estabelecem limites, regras e não dão espaço á criatividade a . A professora do cursinho nunca mais vi depois que fui ao plantão e escutei a frase: redação de vestibular não se pode colocar sentimento é aquilo e pronto, esses textinhos deixa para por em blogs). Pois estão resolvi colocar no blog. A Mix, querida, nunca vou esquecer. Além de ser uma ótima professora, ficou do meu lado e hoje eu vejo que ela estava certa. Essas coisas de vestibular são tão complexas, as pessoas vivem escravas das regras, tanto nas provas como na redação.




Bom sobre a Leila, ela não é anônima, mas é quase. Muitas pessoas não sabem nada sobre ela.Então, achei legal colocar aqui. Nessa época que estamos vivendo em que a mulher é tão dependente, devemos muito e ela.




“Sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão”

“Você pode muito bem amar uma pessoa e ir para cama com outra”, disse Leila Diniz em uma entrevista polêmica concedida ao jornal O Pasquim.Nascida em Niterói e formada em Magistério, Leila foi o maior protótipo da mulher liberam no Brasil.Ela foi defensora do amor livre e é sempre lembrada como uma mulher guerreira que rompeu tabus e costumes de sua época.
De fato, na década de sessenta o movimento feminista chegará ao Brasil.Nessa época, o regime militar estabelecia-se no país, e as pessoas possuíam uma mentalidade conservadora.Assim, em um período que o governo tinha o direito de reprimir e censurar tudo o que era contrário ao seu ideal, era quase impossível algum indivíduo transgredir as leis ou enfrentar o poder.No entanto,Leila Diniz- uma mulher associada á vida e á felicidade –lutou pela igualdade entre homens e mulheres.Leila sempre fora uma mulher de atitudes corajosas, logo, rompeu preconceitos e, após sua morte, milhares de pessoas que a seguiam tranformaram-na em um ícone do movimento feminista dos anos setenta.
Em contrapartida, não eram todos que a apoiavam.Devido ao seu comportamento ousado, foi criticada pelos homens e considerada vulgar e imoral pelas mulheres.Por ser uma mulher á frente de seu tempo,chocou o país inteiro ao exibir sua gravidez debiquíni.Além disso, deu entrevistas, nas quais suas declarações chocaram muito, portanto, foi criada uma lei de censura prévia a imprensa. Leila perdeu seu emprego na Rede Globo, que alegou ser por questão moral e foi perseguida pela polícia.
A verdade é que Leila lutou pelos direitos da mulher, e, consequentemente, assim como todos que quebram normas tanto para atingir uma mudança ou por mera delinqüência,sofreu fortes conseqüências. Contudo, os obstáculos não a impediram de seguir e manter firme suas convicções, afinal como se referia Drumond: “ Professorinha ensinando a crianças, a adultos, ao povo toda arte de ser sem esconder o ser”







quarta-feira, 16 de junho de 2010

Preenchendo os buracos da nossa sociedade



Com a voz calma e serena, sentada em uma sala pequena e escura, em que só há duas cadeiras, uma mesa, uma planta artificial e uma janela, ela conta sua história. Quem fala é Marilene Eggers Alves, mulher firme tanto na fala como na luta, esculpida por uma beleza diferente. Ora, ela leva a mão em seus cabelos loiros e compridos, ora seus olhos verdes e brilhantes se enchem de lágrimas. Ela olha pela janela e admira o jardim, que parece ressaltar o abismo que há entre mundo de fora com aquele ambiente escuro. E reflete:
- Eu sonho com isso para todos. Esse é o meu objetivo.
Esta é a missão de Marilene.Missão que se mescla com sua história de vida. História de esperança, de entrega e, como elas mesmo adjetiva, de paixão. Marilene nascera em Santa-Maria, e desde adolescente se dedica a ajudar os outros. Fora desde sempre voluntária, espírito esse que recebera do pai. Marilene cresceu e virou mulher. Mulher firme, aguerrida, sucedida e inteligente. Ela se formou em Graduação e Licenciatura Plena, fez Pós Graduação em Psicopedagogia, especialização em terapia de família e casal e, por último, se formou em terapia de famílias dependentes químicas, o que atualmente, dedica seus dias, e muitas vezes suas noites. Para a amiga de Marilene, Terezinha, a terapeuta sempre teve o perfil para ajudar os outros; sempre fora calma e educara seu único filho com muita conversa e na base da amizade.
Em 2004, Marlene fora convidada pela Cruz Vermelha, para trabalhar com grupos de dependentes químicos. A terapeuta dedica em média 10 horas semanais, nas terças feiras de manhã e segundas à tarde para auxiliar e orientar grupos multifamiliares na Cruz Vermelha. Ela desenvolve um trabalho de auxílio a dependentes e seus familiares e um estudo das três gerações da família e como essa se estrutura. Marilene acredita que a coodependência é tão triste quanto à dependência, e por isso, a família sofre junto e se torna escrava da doença. Além de ressaltar que a genética potencializa os casos. Para Marilene, o auxílio a famílias é importante, pois amplia a possibilidade de manter a abstinência, uma vez que todos estão trabalhando juntos. Para ela, as pessoas procuram “pelo ter mais e o ser fica esquecido”.E enfatiza:
- É uma sociedade com tecido esburacado. Precisa ser preenchida com ação momentânea de prazer. Infelizmente.
Em 2005 Marilene se tornara coordenadora da Cruz Vermelha e passou a realizar diversos projetos para seus pacientes; como a inserção no mercado de trabalho.Marilene relata que paralelamente a esses projetos, está sempre envolvida em causas sociais. Atualmente, está desenvolvendo uma ação de conscientização ambiental, descoberta de líderes comunitários e emersão dos habitantes da Vila Chocolatão nas novas moradias que a prefeitura está providenciando. Emocionada, Marilene ressalta a importância desses projetos para sua vida pessoal, pois encontra no meio da barbárie e da desgraça que aquelas pessoas estão submetidas, indivíduos de valores e princípios, que lutam por uma vida melhor, o que faz Marilena ficar cada vez mais convicta de seu papel. Ademais, trabalha em seu consultório, tratando casais, dependentes químicos e familiares. Marilene se considerara várias em uma só. E de fato é. São muitas histórias. São muitas vidas. São muitas palavras. São muitas salvações. Ela tirara indivíduos da rua, das drogas e do fim.
É terça-feira, Marilene chega a Rua Independência, número 993. Lá, ela é uma heroína. Logo na chegada, ela é aclamada, recebe presentes feitos pelos pacientes: bolos, farinha, pão, doces. Marilene significa para todas aquelas pessoas que estão ali, uma esperança de um futuro melhor. Permitindo clichês; ela é a luz no fim do túnel. Por isso, eles se agarram a ela, sugam suas forças e imploram ajuda. Contudo, Marilene não tem como ajudar a todos. É somente uma. E eles são milhares. Marilene, dotada de um equilíbrio único e muito respeitoso, chega à porta e diz que só tem 10 fichas para aquele dia, então é para eles se organizarem, que ela atenderá 10 famílias.
Começa a sessão. A mesma sala que Marilene contara sua linda história, agora só se escuta sofrimentos, angustia e desespero. Não existem palavras que descrevam esse momento. Marilene mais escuta que fala; a mãe parece que quer desabafar. O filho mais novo começara no crack para matar a fome. O pai nega. A mãe está desesperada. Os olhos de Marilene fixos na mãe do menino, querem a confortar. Depois do desabafo, é hora de Marilene. Com a mesma voz calma e doce, Marilene auxilia e conforta a mãe. O que surpreende é a firmeza de Marilene,ela não impõe nada, apenas faz perguntas e conduz repostas. Por fim, Marilene abraça a mãe, que agradece e diz que a “doutora” é sua última salvação. Marilene,delicadamente,responde que ajudará no que for possível e que eles podem carregá-la dentro de si, mas que salvação depende de todos.
Ao refletir sobre sua entrega aos pacientes. Marilene ressalta que muitas vezes fica precisa de auxílio, afinal todos tem problemas, e como muitos não conseguem perceber, ela é um ser humano com outro qualquer. Mas, com olhos brilhantes, a terapeuta diz que as recompensas desse tipo de trabalho são muito maiores e o retorno é pessoal, pois há ganho diário - uma abstinência, paciente inserido no mercado de trabalho,um indivíduo fora das drogas, uma família em paz-, isso reforça ainda mais a sua trajetória de vida e ressalta:
- Deitar na cama, depois de uma conquista dessas, só me faz dormir melhor e me encher de esperança e certeza de que estou no caminho certo.
Marilene reconhece que é uma temática difícil. A droga é traiçoeira. Provoca desejos, recaídas. Ressalta que muitas vezes está quase no fim do tratamento de um paciente, quando esse se entrega a tentação. Mas não desiste. Ela tem esperança.
Marilene, não gosta da indiferença. Trata todos iguais. Para ela, classe financeira não importa diante de um problema tão complexo. Sendo assim, trata os pacientes da Cruz Vermelha da mesma maneira do que os do escritório. Com brincos compridos e batom vermelho, Marlilene ressalta a importância de ser ela mesma. Acredita que a igualdade ao paciente não está no fato de usar chinelo de dedo ao não, e sim, na maneira que aborda, no olhar e na entrega. Para a terapeuta é natural se envolver e manter vínculo, pois alguém que entende a profissão e a importância do trabalho não fica só na posição do saber. Marilene nunca perde a postura e a firmeza. Seus atos são fortes, suas palavras são doces. Sua postura acolhe. Parece que compreende tudo, parece que entende o mundo.
Marilene se levantada da cadeira e pega sua bolsa. Caminha em passos lentos. O som de seu salto ecoa pela casa. No caminho da sala até a Independência, Marilene conversa com um homem, olha para trás e diz

-Pode passar o próximo
Narrativa baseada em relatos de Marilene

A Ana Terra do Boqueirão



Em noite quente e silenciosa nas terras fartas da cidadezinha de Santiago, adjetivada como do “Boqueirão”, nascia do ventre de sua mãe, que após dez anos perdera devido a um câncer generalizado, Floriza. Mulher valente, aguerrida, tanto na espera como na luta. Começara há 75 anos sua trajetória. Dava início a uma linda história de amor, conquistas e vitórias. Despertava dezenas de gerações. Nascia consigo uma família. Fora, então, naquela noite de verão, plantada a semente do amor
A caçula dos seis filhos estudara até os 12 anos. Caminhava todos os dias cerca de seis quadras para chegar à escola. Seu sonho era aprender a ler. Aprendera. Seu sonho era ser professora. Não fora. Aos 12 anos, seu pai desenvolvera uma doença crônica, o que a fez largar a escola e dedicar-se inteiramente a ele, quem lhe despertava o amor mais puro e sincero. Fora três anos. Fora dezenas de noites. Noites de sofrimento, angustia e dedicação. O som da madrugada era de tosses e tremores. Passou a dormir no quarto do pai. Não era suficiente. Começara dormir nos pés da cama do pai. Foram três anos de maior entrega. Anos não dormidos. Foram anos sofridos. Era noite chuvosa. Já não se escutava tosses. Nem tremores. Apenas o vento assoprava. Floriza perdera seu pai.
Perdida e sozinha encontrou em seus irmãos o aconchego e calor que necessitava. Passou a ser criada por seu irmão mais velho. Aos 18 anos, esse irmão, que a considerava como uma filha foi tentar a vida na Capital. Em busca de oportunidades, esperanças e de alegrias. Por força maior do destino tiveram que se separar. Floriza, jovem sofrida e desamparada, se viu mais uma vez sozinha. Foi, quando, começava seu caminho. Trilhava sua vida. Escrevia sua historia. A nossa historia. Predestinada, escrava da tristeza e do abandono fora obrigada a se casar. Não conhecia o moço. Sabia pelas moças da cidade que era um rapaz muito bem apanhado, dono de terras e bem vistoso. Aos 18 anos conhecera seu marido, seu único homem, aquele que seria seu companheiro pro resto da vida, aquele que em 2010 estariam fazendo 57 anos de casados. Aquele que junto a ela criou uma geração, uma família e um sentimento maior. Fora predestinada. Fora obrigada. Viu desde cedo a dor e o sofrimento. Despertara, então, a vontade de mudar de vida. Fora naquele homem que vira a esperança. Esperança de mudar o destino que já parecia traçado. Foi um belo casamento. Aquilo que Floriza nunca imaginara. Naquela noite, vestida de branco, esquecera seu sofrimento. Esquecera quem era. Naquela noite resolvera ser uma princesa. Conhecera a esperança. Não conhecera o amor.
Mudara-se. Dividia, agora, a casa com um novo homem. Não eram seus irmãos. Não era seu pai. Era seu marido. Não conhecia. Não o desejava. Mas, era, agora, o seu marido. Sentia-se carente. Chorava todas as noites. Sentia saudade de seu pai, sentia saudade dela mesma. Seu novo homem não lhe dava carinho. Deitava na cama e virava-se. Floriza permanecia parada, sozinha e triste. Mesmo com muitas tentativas, Floriza mantinha-se envergonhada e acanhada. Não estava acostumada com certas caricias. Demorara, mas um belo dia se entregara ao seu homem. Aos 20 anos. Era noite chuvosa. Sua prima chamara a parteira. Seu marido, nervoso, permanecia na sala. Sentia a presença de seu pai. Fora muito suor. Muita dor. Escutava-se os gemidos da sala. Floriza dera a luz a um menino. A jovem paria um garoto de 5 kg em casa, na cama onde chorava todos dias, mas onde, naquele dia, a felicidade se encontrava. Dois anos depois dava vida a uma linda garotinha. Anos após perdera um filho ainda na barriga. Tristeza. Aflição. Ganhara seu ultimo filho dois anos após a perda. Todos vindo com muito suor. Todos ganhos em casa. A felicidade voltava a reinar.
Era como Ana Terra, de Jorge amado. Heroína. Ampliado pela solidão e pela sensação de infelicidade de viver naquele mundo perdido. A sua garra, obstinação e capacidade de resistência. Seu marido, fora batizado por Getulio Vargas. Viajava, se dedicou a política e a guerra.Semelhante a Ana Terra, está a profissão de parteira que Floriza adota como uma metáfora da vida, enquanto a seu redor guerras e revoluções campeiam com todo um tributo à destruição e à morte,Floriza dá vida a milhares de crianças na pacata cidadezinha.
Cansada de esperar seu marido noites adentro, criando seus três filhos com ajuda da criada, Floriza decidiu se deslocar para Porto Alegre, onde estava seu irmãos. Fugiu da tristeza. Fugiu da espera. Fugiu dos boatos que rondava pela cidade. Seu marido encontrava-se com uma sirigaita qualquer. Chegara em Porto Alegre com seus filhos. Seu marido veio atrás. Viajantes, apostaram em uma vida melhor. Se acomodaram na Cidade Baixa, onde são conhecidos e vivem até hoje. Começara uma nova vida. Durante esse anos, nascera o companheirismo, o respeito, a complexidade. Nascera o amor. Fora uma vida dedicado ao marido, aos filhos e aos netos. Cozinhara todo dia. Amara todo dia. Hoje um depende do outro. Hoje um não vive sem o outro. Hoje um não sai de casa sem o outro. Hoje ele não toma chimarrão de manhã sem ela. Hoje ele não dorme sem ela. Hoje são 3 filhos, 12 netos, três bisnetos. Hoje ninguém vive sem ela. Hoje, ninguém vive sem eles. Aprenderam o verdadeiro significado do amor, plantaram e repassaram pelas gerações.
Mudei o nome pois é baseado na história de vida.